sexta-feira, 31 de outubro de 2014

NEBULOSA | Os grilos saem à noite

            


            Nunca fui uma pessoa que apreciasse longas noites. Embora gostasse de me deitar no relvado do jardim, num dia de Verão, e de observar as trovoadas pela janela do meu quarto, a noite é quando a mente fica desocupada dando aso a tudo aquilo em que não quero pensar. Durante o dia tinha-a ocupada com os trabalhos que os professores me exigiam, com aulas, com o conversar de colegas de faculdade, com o burburinho do mundo que me rodeiava; o barulho era uma segunda casa embora seja uma pessoa calada e reservada grande parte do tempo. A noite era diferente.
   
            Quando te deitas na cama ou, no sofá, a mirar o tecto branco do teu quarto, ou de uma outra qualquer divisão da tua casa, um dilúvio de pensamentos que tentaste reprimir durante todo o dia assambarca-te a mente. Os teus problemas veem ao de cima e as tuas preocupações tomam conta de de cada espaço livre que tens. O mesmo me acontece. E detesto. Se eu estivesse interessada em resolver os meus problemas e ver-me livre de preocupações, não que não esteja, faria-o enquanto o Sol estivesse lá no alto. No entanto, as coisas não são bem assim. A luz da Lua tem este efeito em mim, como em qualquer outra pressoa, suponho. Nem as suas crateras ou mares são o suficiente para me abstrair e isso é algo que me irrita profundamente sem que eu me aperceba.

            Mas, lá estou eu. Deitada de olhos abertos e acordados, de barriga para cima e com as mãos sobre a mesma. O tecto do meu quarto precisa de ser limpo e pintado. Está calor agora, mas durante a noite esfria e eu pesco o cobertor já velhinho. A única luz presente no quarto é a do candeeiro na mesa-de-cabeceira. Acabei de ler um livro mas ainda não me sentia cansada o suficiente, ou com vontade de dormir, para fechar os olhos e ser embalada pelos pózinhos do João Pestana.

            Como vim aqui parar? É uma pergunta legítima e que todos já se fizeram a si próprios uma vez por outra. É normal. Ou pelo menos, acho que assim o seja. No meu caso, eu tenho imensa curiosidade em saber como vim aqui parar, quem me pôs aqui e porque é que aqui estou. São perguntas que aparentam ter uma resposta rápida e evidente mas as perguntas simples têm sempre uma rasteira qualquer. Podia dizer que estou aqui porque os meus pais assim o quiseram, por que quiseram ter filhos; ou porque um ser superior a tudo isto assim o quis; ou então, ainda mais simplista, vieste parar aqui de autocarro, guiado por um motorista experiente e estás aqui para dormir porque amanhã irás ter um dia longo na faculdade. Era uma maneira de ver as coisas.

            O que é que eu faço? É nesta altura, enquanto o sono não chega e o corpo não está habituado à rotina, que este género de perguntas me começa a atormentar. Sim, a atormentar. É o que ganho depois de as ignorar por tanto tempo. Durante toda a vida, em alguns momentos mais no que em outros, surge esta pergunta. A verdade é que nunca fui muito ambiciosa, sempre tive vários sonhos que quis realizar mas nunca me empenhei a sério por um deles. Levava, e ainda levo, a vida com a famosa atitude deixa-andar-e-depois-logo-se-vê. Embora tivesse muitos sonhos, o meu entusiasmo era leviano e passava em duas ou três semanas. Se me perguntavam se eu tinha planos para o futuro, respondia: até lá ainda tenho tempo para me decidir. Mas a verdade é que o tempo que tenho não está a prolongar-se. Muito pelo contrário. O meu tempo está a acabar e ainda não sei o que quero fazer da minha vida.

            Chego ao interruptor do candeeiro e desligo-o. Talvez assim consiga adormecer mais depressa, impedindo esses pensamentos de tomarem conta de mim mesma. Viro-me para a direita e encaro a parede branca por entre a escuridão.

            Já nem vontade de escrever tenho. Consigo arranjar sempre uma desculpa para não fazer algo que me dá imenso prazer. Ou é por não ter inspiração. Ou por não saber sobre o que escrever. Também há a desculpa de agora não ter tempo. Ou o facto que quando tenho vontade e inspiração, por obra e graça do destino, aparece-me qualquer coisa à frente com o mesmo tema mas escrito por outra pessoa. Ah, a ideia já foi executada, e provavelmente ainda ficou melhor do que eu a faria. Bem, terei outra ideia mais tarde. Não será esse o problema.

            Fecho os olhos e talvez seja desta que o sonho venha e leve os meus pensamentos com ele. Porque essa é a única certeza que tenho para esta noite. Eu não tenho a certeza do que se passará amanhã quando estiver no autocarro, ou na faculdade a ouvir os meus professores; não tenho a certeza do que será o almoço ou se jantarei; não terei a certeza se terei posto a escova e pasta de dentes na bolsa para poder passar a noite fora de casa; nem sequer tenho a certeza se não virei para casa, para o meu quarto. No entanto, de uma coisa tinha a certeza: que o sono viria. Mais cedo ou mais tarde ele acabaria por tomar conta do meu corpo levando o seu desejado tempo. Eu, sem qualquer defesa e sem resistência, deixar-me-ia levar. O meu corpo ficaria leve, a minha respiração lenta e os batimentos do meu coração deixar-me-iam num estado muito próximo da morte. Não que tirasse algum prazer de estar próxima da morte, ainda tenho muito para viver. Mas gostava da sensação que me propocionava. Paz, calma e silêncio. Não o silêncio inquietante, no qual todos os pensamentos e preocupações vinham ao de cima. Não. Um silêncio reconfortante. Como quem diz: já pensaste que chegue por hoje. É hora de adormeceres. Não te debatas. Simplesmente...deixa-te ir.

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